quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

#crítica 3

O Espelho
de Andrei Tarkosvky
Tiago Domingues | Ex-Aluno do Agrupamento de Escolas Nuno Gonçalves


 "O ESPELHO": A ARTE
  TRANSVERSAL DO FILOSÓFICO

 " Eu havia decidido que neste filme, pela primeira vez, iria usar os recursos
   do cinema para falar de todas as coisas que me eram mais caras, e que iria
   fazê-lo diretamente, sem usar quaisquer truques.”


Tarkovsky 


A magnitude da ausência traz a sequência dos tempos cicatrizados. A existência humana, dotada de aspetos perturbados da personalidade, ao mesmo tempo que nada revela sobre a sua própria natureza - tácita e obscura - é um problema de tradução.

Há, na nossa mente, todo um imaginário criado à volta de futuros contactos da espécie humana com outras espécies, não-humanas, que eventualmente ansiamos encontrar.

Andrei Tarkovsky, preclaro cineasta soviético desde Sergei M. Eisenstein, adotou – em Moscovo – os estudos envoltos na música, pintura, escultura e geologia. Filho de poeta e atriz, desde cedo estabeleceu um contacto com os mais diversos meios artísticos, sendo em 1954 que acolheu o percurso que lhe parecia estar vinculado desde a mais tenra idade. É no interior da Escola de Cinema de Moscovo que inicia o seu trajeto, vinculado no ano de 1962, aquando da sua primeira longa – metragem: “A Infância de Ivan”.

Num filme onde palavras não conseguem transmitir as emoções como a imagem faz, existem dois modos consonantes de encarar a obra “O Espelho”: a crónica pode ser vista como a jornada de Aleksei, enquanto reflexo desta passagem na vida de todo e qualquer ser humano; ou, por outro lado, como o espelho existencial do próprio diretor que, muitas vezes, esclareceu a importância desta peça ao descrever – com exatidão – os domínios particulares da sua infância, bem como o campo externo que a comporta (as ações ocorrem no interior da casa e ao redor dela, aludindo diretamente para o individual).

Após inumeráveis porções do filme, lançadas após o primeiro entender imaturo, não é difícil perceber que é a voz do narrador por trás da câmara que assume o seu ponto de vista; que impulsiona a narrativa, e que os sonhos e lembranças apresentados fazem parte da sua vida ou daqueles outros humanos que, ainda que fossem próximos a ele, visavam ímpares pessoalidades. No fundo, se fixarmos o ponto de vista, percebemos a existência de uma cena em que a mãe conversa com um estranho na casa do campo, por exemplo. A ligação entre passado e presente na mente do narrador é de tal forma possante que é a imagem do seu filho que aparece quando recorda a sua infância (interpretada pelo mesmo ator), assim como a sua ex-esposa e mãe que transfiguram a mesma pessoa (ambas interpretadas por Margarita Terekhova).

Trata-se, sobretudo, de encontrar o início e o fim; florescer e brochar, preencher e esvaziar, ter céu e terra num misto de felicidade e tristeza plasmadas nas lágrimas de exaltação ou desespero no seio da mais desconcertante harmonia. O próprio A. Tarkovsky desenhou uma rota semelhante na produção do filme, julgando mitigar os seus demónios e complexos que carecem desse expulsão interna para conseguir prosseguir lúcido; encontrou uma forma de se expressar cinematograficamente que era um nado da época e que, entretanto, permanece inovadora e tenaz até hoje, aliando narrativa ficcional, imagens de arquivo ou documentário, material autobiográfico e elementos vindos da literatura, música e pintura.

Neste sentido, a obra atravessa três períodos históricos, o pré (1935), durante (anos 1940) e o pós-guerra (anos 1960 ou 70), num fluxo de tempo, símbolos e signos que deixam muitos espectadores individualmente apegados às dezenas de significados que uma cena específica pode ter (exemplo: a mãe a flutuar numa face oculta: o sono, é a cena mais intrigante) em vez de digerir a película como uma narração poética e cheia de mistérios, confusões e interação de personagens e lugares feita por alguém em tom de confissão para o público. Constrói um fantástico cruzamento de memórias privadas e públicas, íntimas e coletivas, insignificantes e históricas, através de um jogo de “flashbacks”, sequências oníricas e documentários da época. Uma experiência quase fantasmagórica, onde o diretor pega no quotidiano e faz com que o espectador o sinta como algo surreal.

Quer dizer: por mais misteriosas e oníricas que as cenas de sonho e memória possam ser, e por mais inesperada que seja a forma em que surgem, todas elas são dotadas de uma beleza poética, principalmente nas cenas que ressaltam a natureza e as paisagens da infância do narrador de forma apaixonada, carregando um peso emocional no qual todos se compreendem, como a nostalgia, melancolia, abandono, saudade e afeição. Assim, Tarkovsky apresenta um brio extremamente pessoal no seu gesto linguístico, sem, no entanto, deixar de refletir sobre o mundo à sua volta, e sem perder a capacidade de tocar os outros ou de os deixar relacionar a narrativa às suas próprias experiências e impressões. É como refere L. Wittgenstein: “a palavra é privativa, porque carrega uma biografia.”

Todas estas informações estão espalhadas pelo filme, algumas delas com um quê de mistério em torno (o garoto num tratamento de gagueira, por exemplo), e outras propositalmente contadas fora de ordem, para que o impacto não esteja ligado apenas àquela situação em si, mas à semelhança que guarda com outros momentos – como uma imagem refletida num espelho. Através dos poemas de Arseni Tarkovsky (pai do diretor, que lê os seus próprios escritos em off) e da variação de cenas em cor para preto e branco ou sépia, o espectador toma o fluxo de consciência do narrador como também sendo o seu, aproximando sensações e os muitos sentimentos que sabemos ou julgamos saber do protagonista, como o remorso, o arrependimento, o desejo de retorno, a nostalgia, a reconstrução de valores e de uma vida após grandes separações. A obra, assim, espelha no público aquilo que ela tão intimamente confidencia.

Em síntese, “O Espelho” representa a essência daquilo que fica para sempre em nós – um olhar tricéfalo (eu fui; eu sou; eu hei de ser). O legado da maternidade e da paternidade, o desperdício inocente da infância, a amargura — às vezes paradoxalmente feliz — da vida adulta, especialmente quando olha para trás e sente muito mais quando pensa nesse passado do que ao viver no momento presente.

É uma exposição acerca do sublime das cicatrizes deixadas em nós pela vida e, como somos humanos, demasiado humanos, por muito que teçamos uma qualquer revisão, comentário ou crítica (se é que é possível a sua existência) a inteligência cinemática de Andrei ultrapassa a de qualquer espectador - fazendo-o regressar, por último, ao seu estado de ignorância e espasmo.





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